Por Sérgio Jacomino
A Lei 12.703, de 2012, que entrou em vigor a 7.8.2012, introduziu no ordenamento jurídico pátrio a esdrúxula figura da chamada portabilidade do crédito imobiliário.
Sem qualquer sentido técnico, tangenciando grosseiramente as conhecidas figuras do direito civil, a portabilidade acolhe em seu colo semântico equívocos que geram confusão e embaraços. O intérprete deve esforçar-se para alcançar o sentido da norma, emprestando-lhe eficácia plena.
Como entender, pois, essa figura anódina? Vamos estudar em qual dos institutos jurídicos, conhecidos há milênios e consagrados na legislação pátria, poderia calhar essa figura criada por algum burocrata esforçado mas sem profundo conhecimento do sistema do direito civil e do registral em particular.
Portabilidade - a estranha filha barregã
A Lei 12.703, de 2012 originou-se da Medida Provisória 567, de 3.5.2012. Os objetivos que inspiraram esta última foram perfeitamente enunciados no bojo da Mensagem 156/2012 que a encaminhou ao Congresso Nacional. Da redação da EM 73/2012, de 3.5.2012, assinado pelo Ministro Guido Mantega, se descobrem as razões da edição da medida provisória: alteração da remuneração adicional do saldo de depósitos da caderneta de poupança com vistas a reduzir a sua rentabilidade.
A rentabilidade da caderneta de poupança, segundo demonstrou o ministro, não acompanhou a queda das taxas de juros, e isso, ainda segundo ele, poderia levar à seguinte situação:
Assim, em tese, estaríamos em uma situação na qual o financiamento imobiliário advindo dos recursos captados via depósito de poupança apresentaria taxa mais elevada do que a do financiamento realizado com recursos da tesouraria das instituições.
Com tal justificativa, alterou-se dispositivo da Lei 8.177, de 10.3.1991.
Até então, a figura da portabilidade se não havia apresentado. Ela nasceria no Congresso Nacional no bojo do Parecer 7, de 2012, de autoria do deputado Henrique Fontana, apresentado no Projeto de Conversão de Medida Provisória 17/2012 (Diário da Câmara dos Deputados de 27.6.2012, pp. 23.245 et seq.)
Não se pense que houve qualquer preocupação em ajustar tal figura nos institutos jurídicos apropriados. Não! Ela nasce como filha ilegítima da medida provisória e na sua ata de nascimento não encontramos mais do que essa platitude:
A portabilidade do crédito imobiliário é, na verdade, uma ferramenta importante para contribuir com o esforço empreendido pelos agentes econômicos do País objetivando reduzir as taxas de juros.
Os dados do Banco Central apontam que estamos com uma margem superior a 28% ao ano, aplicada ao custo da captação dos bancos, o que representa mais de três vezes o valor da taxa Selic, hoje em 9%.
O problema a ser enfrentado, logo se viu, seria o spread bancário. Os índices praticados no Brasil só perderiam para o Congo e Madagascar, segundo o ilustre parlamentar. Os ajustes seriam, pois, necessários. Mas e os cartórios - o que eles têm a ver com tudo isso?
Os Cartórios entraram como Pilatos no credo
Vamos dar voz ao Sr. deputado ao pontificar sobre os "custos cartoriais":
Como os custos cartoriais poderiam causar algum tipo de entrave ao exercício do direito à portabilidade, o Projeto de Lei de Conversão de Medida Provisória que apresentamos, passa a prever apenas averbação na troca de credores que tenham garantia hipotecária ou de alienação fiduciária de bem imóvel. Esta mudança reduz os custos do mutuário, vez que atualmente se requerer o registro, caso haja mudança de credor, registro este mais caro do que a averbação.
Onde se acha o erro essencial desta assertiva?O problema do spread bancário não é decorrente das "taxas cartoriais" (rectius: emolumentos - este é o nome técnico apropriado até à dinâmica legislativa, conforme art. 236, § 2º, da CF/1988 c.c. art. 14 da Lei 6.015/1973).
Visse com detalhe, perceberia, o ilustre parecerista, que os emolumentos representam valores praticamente desprezíveis na planilha de custos das operações financeiras interbancárias. Afinal de contas, é disso que se trata. A portabilidade é simplesmente a substituição do agente bancário que figura como credor nas operações de crédito imobiliário, mantido o mesmo devedor.
Precipitação, açodamento, imperícia - signos de ignorância ativa
Por outro lado, o interesse dos bancos na portabilidade já tem ocasionado uma certa perturbação no sistema, com determinados agentes praticando uma selvagem concorrência predatória, o que levou o governo a pensar na criação de uma taxa nas operações de portabilidade. Este é o teor da notícia publicada pelo jornal O Globo, na sua ? edição de 16.11.2012:
O governo vai permitir que os bancos cobrem uma taxa nas operações de portabilidade do financiamento imobiliário - transferência do contrato para outro banco que ofereça melhores condições ao mutuário. O valor, no entanto, não poderá ser cobrado do cliente e terá que ser pago pela instituição que vai assumir o financiamento habitacional.
Enfim, identificada a concorrência predatória, em processo qualificado pelo mercado como de autofagia, os técnicos do Banco Central e do Ministério da Fazenda agora estudam a criação de uma nova taxa bancária. Segue a reportagem do jornal:
Inicialmente, havia resistência por parte da equipe econômica em autorizar a cobrança de tarifa na portabilidade, mas pesou a favor o fato de que a Caixa Econômica Federal, que domina o mercado, tanto com recursos do FGTS, quanto da poupança, ser prejudicada num processo classificado no governo de autofagia. Prova disso é o BC ter orientado os interessados a não migrar o crédito só por conta de uma taxa de juros mais baixa. O conselho tem sido na direção de tentar primeiro renegociar o contrato com o banco em que foi feito o financiamento.
Ou seja, vilipendiou-se a boa técnica legislativa para reduzir os custos cartoriais para, afinal, ser criada uma nova taxa para a portabilidade. Qual era mesmo o objetivo da medida provisória? Açodamento. Imperícia. Marketing. Oportunismo. qual o melhor qualificativo para o cometimento?
Calharia perguntar: em que medida os cartórios têm responsabilidade nessa trapalhada criada pelos luminares do governo e de sua base parlamentar? Se agora se pensa em remunerar os originadores do crédito, vítimas dos "agentes oportunistas", por qual razão não se deixou a conta dos "custos cartoriais" nas mãos dos agentes de mercado, interessados, como evidentemente estão, na dita portabilidade que representa evidentes vantagens econômicas?
Não se pense que o "custo cartorial" fosse elevado. Por incrível que pareça, tivesse o parlamentar optado pelas figuras correntias do direito civil - como a cessão do crédito, sub-rogação legal ou mesmo a simples novação -, e o valor dos emolumentos devidos importaria exatamente o mesmo valor. Trata-se de averbação com valor declarado.
Portabilidade - mero marketing
Já vimos que a expressão portabilidade não representa qualquer sentido técnico jurídico. É um simples produto de marketing. Depois de lançado o programa no mercado, os problemas não tardaram a surgir. Já vimos que os bancos agora pressionam o governo para que seja criada uma taxa de migração do crédito, visando atacar o que se qualifica de concorrência predatória.
O chefe do Departamento de Normas do Banco Central, Sérgio Odilon dos Anjos, já afirmou que a portabilidade do crédito não pode se tornar um mecanismo "autofágico e destrutivo". Não tardou e a própria Caixa Econômica Federal se deu conta do erro estratégico que foi a criação desse mecanismo que foi por ela mesma postulado. Protestando por uma urgente regulamentação do BC, Teotônio Rezende afirmou que "há preocupação de não deixar [a portabilidade] tão solta, que faça com que os bancos se especializem em ser portadores, sem originar crédito". (as declarações foram publicadas pela Agência Estado, ?edição de 7.11.2012, em matéria assinada por Eduardo Cucolo).
Para corrigir essa distorção gritante, o deputado Paulo Teixeira apresentou projeto de lei (?PL 4.383, de 2012) em que o rigor técnico parece voltar à cena legislativa.
Já no art. 1º é extirpada a bisonha expressão portabilidade, reintroduzindo-se a ideia de livre eleição da via negocial para alcançar o efeito desejado, "inclusive sob a forma de sub-rogação":
Art. 1º A transferência de dívida de um credor para outro, decorrente de financiamento imobiliário, com garantia real, inclusive sob a forma de sub-rogação, obriga o credor original a emitir documento que ateste, para todos os fins de direito, inclusive para efeito de averbação, a validade da transferência.
Na justificativa do projeto, Paulo Teixeira vai direto ao ponto:
Comecemos pelo uso da expressão "portabilidade de crédito" em texto legal. Em que pese ser esta uma expressão de crescente utilização popular, não há dispositivo legal que lhe atribua um conceito formal. Desta forma, o texto aprovado na Lei nº 12.703, de 2012, pode suscitar questionamentos jurídicos desnecessários e prejudiciais ao desenvolvimento da "portabilidade de crédito". Por esta razão, deixo de mencionar a expressão no texto legal e passo a utilizar "operação de transferência de dívida de um credor para outro, inclusive sob a forma de sub-rogação"; que não inova em termos jurídicos e basicamente descreve a operação.
Outro aspecto importante do dito projeto é que ele não se dedica ociosamente a envolver os cartórios. O "ato único" previsto no número 30 do inciso II do art. 167 da LRP, agora reformado, será o mesmo ato que sempre foi praticado nos casos de sub-rogação hipotecária. Não inova, pois, a tradicional prática registral. O fato de ocorrer um maior desenvolvimento do tema, tal se deve à necessidade, sentida pelo parlamentar, de afastar as dúvidas que agora rondam a aplicação do mecanismo sub-rogatório.
Dúvidas dialógicas
O PL 4.383, de 2012 suscita ainda algumas dúvidas.
Muitas questões podem ser levantadas a respeito do projeto que tramita no Congresso Nacional.
Reconheça-se: ele tem várias virtudes. A maior delas, a meu ver, é que coloca o assunto nos trilhos. É um projeto que se dedica a regulamentar o processo, oferecendo ao destinatário da eventual norma uma direção segura. Não deixa de dirigir o comando para que o Conselho Monetário Nacional e o Conselho Curador do FGTS expeça as instruções minutando os procedimentos para a execução da lei.
Volto com algumas observações sobre o dito projeto. Ainda há tempo para aperfeiçoá-lo.
Sérgio Jacomino, 5° Oficial de Registro de Imóveis da Capital. Doutor em Direito Civil; Especialista em Direito Registral pela Universidade de Córdoba, Espanha.